ENTRE A GÊNESIS E A RESILIÊNCIA
Exatamente isso, não
se engane – infame! Nunca serás de você que falo, ainda que fale, minto! Pois
não há mais falso do que pensar que autor algum parca segundo de existência a
escrever sobre outrem senão ele mesmo. Mas aqui eis a explicação do fenômeno do
reconhecimento, da cumplicidade da plateia que ri da piada. Se te reconheces é pela
lástima divina de ter pouco barro no Gênesis. Somos Ab Ovo condenados pelo desvio de verba e pelo corte orçamentário, estes
nos condenaram a um socialismo da material primordial: divisão e aproveitamento
a todo custo de barro! Nada é exclusivo; não há posses. Do barro do coração de
uns foram feitas as mãos de outros e os pés dos restantes; aí entende-se por
que alguns têm vossos corações nas mãos e outros vivem a pisar o mesmo.
Colocou-se um pouco mais de água no barro e fez-se o estômago, então
aproveitou-se e fez-se logo a boca, pela ligação lógica de tais componentes,
mas sobrou barro... e com este restinho moldou-se os olhos dos famintos. São
essas criaturas que desejam tudo o que os olhos alcançam e nunca estão
satisfeitos. Denunciou-se logo a falta do fígado; raspando o barro, fez-se este
da fina camada de sujeira que residira no chão celestial. Mas se há verdade, ou
verdades, uma delas é: entre os vãos, da unha e do chão, sempre há restos - de
barro ou mágoas - que precisamos extirpar. Então nas reminiscências do hepático
barro, pegou-se os homens, deitaram-lhes no chão, e rolaram de lá pra cá, de cá
pra lá... uma empanado de homem, barro de rosca encapando o homem com o que se
chamaria pele. Puxando dali, raspando de cá todos os homens cobriram-se com tal
pele hepática. Procedência essa de
sermos cobertos de tanta vaidade e tanto orgulho: irmãos siameses.
Babozeira metafórica
e introdutória o escrito e lido até aqui; esqueçam caso queriam algo que valha
a real ponderação eis:
Desimportante é o barro
que te compunha, todos sempre irão querer culpar alguém: descobrirá, cedo ou
mais cedo ainda, que alguém tem o teu coração nas mãos. E quão dedicara-se, quão
dera atenção a este, que segura teu coração – ainda que com dedos leves, fazia
um apenas exercício fisioterapêutico com ele, como bolinha de borracha a
entreter. E quão tu jubilava-se com a menor atenção – um olhar? Que vá, um
olhar! – dado por tal dono cardíaco teu.
O que me importa a
cor do barro de tua composição? Sei também que tão inevitável quanto encontrar
portas fechadas no caminho é o fato de que enquanto dedicava-se, chamava,
clamava, implorava pela atenção e amor, - todos notaram teu olhar desejoso, não te
preocupes! – buscava como estrela no céu a ser alcançada, teus pés, assim sem
querer, pisava uma estrela do mar. Pois teus pés foram feitos do mesmo barro de
um coração que ignoras por completo. Quem diria, pobre vítima!, que enquanto
corrias com a mão estendida pateticamente a fim de alcançar aquele que tem teu
coração nas mãos, cada passo, cada pisada era no coração despercebido. Quanto mais corres em direção daquele que nenhum
valor te dá, tu és sustentada por um coração que sangra em teus passos, e dilacera-se
no caminho. Mas não se preocupe
em olhar para trás – Eia, olha tua estrela à frente! Avante! – atrás, um rastro
que não se sabe se barro, coração, sangue...
E aqueles que estão na
busca, mesmo se desconfiarem que a busca é inútil, adoram se enganar e correm,
adoram correr – pulmões inesgotáveis - e amam desgastarem-se em frangalhos. Amantes
da dor, do “dedo na ferida”, masoquistas... Não cansam de ouvir o corvo
grasnando “Never More! Never More!”, e continuam perguntando, mesmo já sabendo
a impassível e inevitável resposta! Inventores de suas quimeras...
Necessário notar nos necrológicos
parágrafos anteriores um clico. Mãos, não lamentem os corações; corações, não lamentem
os pés: Não há culpados! João não é culpado por se mudar para os EUA, nem Tereza
por entrar no convento, nem Raimundo ou Joaquim por suas mortes, nem Maria por
ficar para tia, nem muito menos Lili e o dissonante J. Pinto Fernandes por
serem felizes. E não se sinta culpado por querer culpar Deus em teus
sentimentos mais íntimos. Às vezes não há culpados, a ciranda que é de pedra.
Seja todo e qualquer barro,
estômago sempre tem um limite, mas mesmo cheio uns querem mais. Os que têm estômago
na boca se alimentam até a tampa e ao fim ficam tristes por caber tão pouco;
muito que é pouco, muito pouco, dizem. Pior ainda os olhos de estômagos, enchem-se
e não param de desejar – o desejo nasce nos olhos! – os olhos percorrem a
terra, mas sempre desejam, famintos, o horizonte. E nunca lembram, não importando
onde estejam, que onde pisas é sempre um horizonte de outro lugar – E sofrem de
insatisfação crônica, eternamente com olhos famintos dão “pouco valor ao muito
que têm, e muito valor ao pouco que lhes faltam”.
Toda pele precisa de sol,
necessidade divinamente dissimulada pela sobrevivência. Nós somos o a vela que
não suporta esconder-se embaixo da cama ou no candeeiro; vaidade de mostrar-se,
publicar-se. A felicidade é um riso menor se não houver plateia, o mesmo vale
para as lágrimas. E orgulha-se converte-se tudo em espetáculo. A pele, que é bílis,
exige o mundo exterior. O equilíbrio arquitetado pela Natureza é o fato do
barro endurecer ao sol. Ao passo que ganha dureza, ganha também a capacidade de
quebrar-se. Sublime ironia... O orgulho fortifica e enfraquece, alimenta e
envenena, enrijece e nos torna quebrantáveis. Irresistível não admirar - com sorriso
malicioso – a ambiguidade da condição do cavaleiro vaidosamente guarnecido em muralhas
impenetráveis. Paredes e pele; barro, barro e orgulho. De fora para dentro,
proteção; de dentro para fora, solidão.
A vida nos exige um
contrato, contrato de resistência, contrato de resiliência, contrato do “apesar
de”, o contrato da inocência e coragem, um contrato que não passa a mão em
nossas cabeças. Necessário olhar um horizonte sempre, - adaptar-se, inventar-se,
ressuscitar – olhar um horizonte que por vezes está sobre nossos pés.
Que lástima! Falei “nossos”,
falei de ti; perdão, quis falar, meus pés!
Fabiano de
Andrade
11 de junho de 13,
em um retorno, saudoso e exigente.